CHANFANA E NEGALHOS

Há alguns anos atrás, quando se festejava o Santo Padroeiro na minha aldeia, em muitas casas se matava uma cabra ou uma ovelha para confeccionar a famosa chanfana, pois festa sem chanfana não era festa. As mulheres transportavam à cabeça cestas ou bacias com os buchos e as tripas dos animais em direcção ao rio onde se fazia a sua lavagem, pois não havia água canalizada e tinha de ser tudo aproveitado. Confeccionavam-se os negalhos que eram compostos pelos buchos cortados em pedaços e por pedacinhos das tripas a que se juntava arroz e os diversos temperos.

Os bocados de bucho e o recheio prontos para a operação de costura.
Quase todas as casas tinham um forno para cozer a broa e era aí que a chanfana e os negalhos eram assados em caçoilas de barro, depois de mergulhados em vinho tinto.

Hoje as coisas, salvo algumas excepções, já não se passam assim. Muitas famílias agora vivem em apartamentos, não criam gado nem têm forno da broa. Mas isso não significa que a chanfana não continue a ser um prato de honra em qualquer festa, seja ela em homenagem ao Santo da terra, ou por qualquer outro motivo. Aliás, aquela velha história de que a chanfana tinha que ser feita de carne de cabras velhas, assada em caçoilas de barro preto, em forno de lenha e mergulhada em bom vinho, já não é o que era. Agora os tempos são outros, compra-se a carne de cabra no supermercado sem se saber a idade do bicho, qualquer vinho tinto desde que não seja palheto serve, o fogão substituiu o forno e até as caçoilas se transformaram em panelas de pressão. Por mais Confrarias que existam a dizer que a verdadeira chanfana tem de ser assim ou assado, cada um desenrasca-se como pode. O povo genuíno, aquele que tem de sobreviver com ordenados ou reformas miseráveis, não veste os fatos espalhafatosos dos confrades nem vai aos restaurantes comer a dita chanfana tradicional servida a peso de ouro e também se está marimbando para a disputa sobre a origem da mesma, pouco se importando se a sua terra é a capital mundial universal da chanfana ou se é apenas a capital da dita. De resto, a história sobre a origem da chanfana faz-nos recuar ao tempo das invasões francesas, há duzentos anos atrás e àquele que foi um período de “cabras magras”, sendo portanto de excluir a hipótese de grandes exigências em termos qualitativos dos ingredientes.

Os negalhos já cosidos com linhas.
No fim-de-semana que passou estive a confeccionar negalhos. Aviso já que não respeitei nenhumas regras tradicionais, fi-los à minha maneira, um pouco ao sabor da imaginação e, modéstia à parte, tenho que dizer que ficaram óptimos; um autêntico petisco. Foi assim:

Comprei dois buchos de cabra no supermercado, algumas tiras de entremeada, dois chouriços tipo corrente dos mais baratos e uma embalagem de cinco litros de vinho tinto (mas só gastei cerca de dois litros); este vinho tinha 12 graus e custou cerca de quatro euros, tendo servido perfeitamente para o fim em vista.

Comecei por limpar convenientemente os buchos e escalda-los com água bem quente; de seguida cortei-os em pedaços mais ou menos quadrados com cerca de 10 a 15 cm. Depois preparei o recheio que foi composto por pedacinhos de entremeada e chouriço, arroz (cerca de meio quilo) e os diversos temperos: sal, pimenta, salsa, colorau, louro e hortelã (a hortelã é indispensável, pois dá um óptimo sabor aos negalhos). Não falo em quantidades pois calculei tudo a olho e saí-me muito bem, apesar dos meus conhecimentos de cozinha serem especialmente básicos. Digamos que para além da chanfana e negalhos sou “especialista” em fazer churrascadas e estrelar ovos…ah! E também faço, uma vez por outra, bacalhau à Brás, o que já não é muito mau, digo eu…

Nas caçoilas, prontos a entrar no forno.
Bem… depois surgiu a parte mais complicada para mim que foi fazer a cosedura (com s) dos negalhos; isto é: cosê-los com agulha e linhas! Eram dezoito negalhos e este trabalho demorou mais de uma hora, porque a prática não é muita, mas lá me safei e o resultado está à vista na foto. Convém não encher demasiado os pedaços de bucho com recheio, pois é necessário contar com o crescimento do arroz. Feito isto dividi os negalhos por duas pequenas caçoilas e cobri-os com o vinho a que juntei duas cabeças de alho com casca e tudo, duas ou três folhas de louro e duas colheres de sopa de azeite. De seguida foi só meter as caçoilas no forno que já estava quente e esperar. Não contei o tempo que demorou a cozedura, mas acho que foram cerca de duas horas, ou talvez um pouco mais porque o vinho nas caçoilas demorou algum tempo até começar a ferver.

Já assados.
O meu forno, de que já aqui falei, dadas as suas características, permite que possa ir vigiando amiúde o que se está a confeccionar, sem problemas, evitando por isso alguma preocupação no que respeita ao tempo de confecção dos alimentos, mas isso também depende da temperatura, como é evidente.

Se não tiver forno não deixe de fazer negalhos por esse motivo. Eu já os confeccionei em caçoilas, em cima do bico do fogão e também na panela de pressão, assim como chanfana também. Mas se não tiver forno de lenha acho que o melhor mesmo é cozê-los numa panela de pressão. Demora menos tempo e ficam óptimos também. Ficam quase tão bons como no forno, agora quanto ao tempo exacto é que já não me lembro. Na panela de pressão é mais rápido por isso não convém deixar no fogão tempo em demasia.

No prato, prontos a comer.
Se nunca fez negalhos, experimente pois é um prato muito bom e não desanime se na primeira vez não correr bem, não próxima correrá melhor. Servidos com uma batatinha cozida e acompanhados por um bom vinho tinto são um autêntico manjar e, feitas as contas, até nem fica muito caro. Dão um bocado de trabalho, mas vale a pena!

Bom apetite!

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12 comentários:

  1. Boa noite Amigo José Alexandre

    Com isto já ganhei uma receita.
    Muito francamente nunca comi chanfana, não sei qual o gosto que tem.
    Tenho ouvido gabar muito este prato, mas um dia destes acho que vou fazer.
    Na terra da minha mulher que é Tomar, tenho por lá um forno a lenha e irei experimentar. No forno a lenha sempre deve sair melhor.
    Antes que a tradição se perca, senão acontece como o porco...vem a ASAE e pimba, lá se vai a chanfana.
    Neste pobre país em tudo o que era bom tem havido grande empenho em fazer desaparecer, todos os argumentos servem, vá-se lá saber porquê e para quê.
    Um abraço
    Camilo

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    1. De onde veio esta receita???
      Negalhos com recheio de entremeada,chouriço e arroz...coisa mais esquisita ... Sei do que falo (eu sou da terra da chanfana)

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    2. Se é da verdadeira terra da chanfana devia saber que, por cá, muita gente faz negalhos ou, se preferir, enchidos com pedaços de bucho de cabra adicionando-lhe esses ingredientes. Não me parece nada esquisito e, por acaso, até é muito bom. Se quiser pode comprovar, que a receita não tem direitos de autor...
      Boa tarde e obrigado pelo comentário.

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  2. Então o amigo Camilo nunca comeu chanfana?! Nem sabe o que tem perdido! É um prato óptimo, mas para falar verdade eu ainda gosto mais de negalhos, daqueles que eu faço, claro.
    Tem que vir cá prová-los e a chanfana também porque não há melhor que a de Miranda. Não sei se conhece a história da chanfana, mas dizem que ela nasceu cá, no tempo das Invasões Francesas e pegou de estaca.
    Um abraço.
    José Alexandre

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  3. Boa tarde Amigo José Alexandre
    É verdade, nunca comi Chanfana, e Negalhos muito menos.
    Quando for para essas bandas, tenho de provar isso.
    Aqui no Ribatejo não se usa muito. Só se for no Alto Ribatejo, ali perto de Mação, talvez já usem a tradição da Beira.
    Um abraço
    Camilo

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  4. Nunca comi Negalhos. Estou ansioso. O meu nome de família é, precisamente, Negalho. Aguardo a primeira oportunidade.

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  5. Viva Joalex! Muito bem! A receita posta aqui, levou-me à minha meninice. A senhora minha avó, para matar saudades da terrinha (digo eu), de vez em quando fazia negalhos, mas dava-lhe outro nome. Se não se importa vou roubar-lhe o saber. Meu Marido gosta e quando lá formos acima, faço-os. No forno de lenha deve ter outro sabor. É como a chanfana. Já Chanfana tanto é aqui como lá. Gostamos de carne de cabra velha, que já deixou descendência e no tacho em cima do fogão a gás também é muito boa...
    Quanto às confrarias acho-lhes alguma graça, na busca do tradicional e a sua promoção, mas não são para o povo, aquele que vive do seu trabalho e não de rendas ... onde eu me incluo, claro está.
    Não sou muito a favor de um prato tradicional adaptado «à minha maneira». Se o bacalhau é à Gomes de Sá ... não pode ser à minha maneira :). Re-baptizo-o e pronto. Mas entendo o que quer transmitir-nos.
    Vou ao «meu talho» a ver se encomendo buchos de cabra.
    Muito gosto em vir aqui.
    Fique bem.
    Um abraço.

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    1. ...fiquei com vontade de experimentar! Nunca vi bucho de cabra à venda....o forno a lenha, tenho.

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    2. .... pronto, já desenvencilhei o mistério.... o comentário atrás é meu! Está quase a fazer dois anos que aqui comentei e recebo hoje um email sobre o mesmo...hehehe

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    3. Peço desculpa, mas... qual mistério? Não estou a perceber nada. Se quiser ter a bondade esclarecer...
      Obrigado!

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  6. Já enviei o esclarecimento por mail. Depois diga-me se percebe o que aconteceu.

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    1. Peço mais uma vez desculpa, mas não recebi email nenhum...

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