Do meu percurso profissional constam dez anos de trabalho numa empresa de fabrico de materiais de barro para construção. Por esse motivo sinto-me de algum modo ligado a essa indústria e por isso já aqui publiquei dois artigos abordando esse tema. Hoje volto ao assunto das cerâmicas, sendo um pouco mais pessoal e falando das minhas experiências e dos conhecimentos que adquiri neste ramo, sobretudo na área da cozedura dos materiais, pois durante nove dos dez anos que trabalhei nessa empresa foi a exercer as funções de forneiro.
A indústria do barro foi e ainda é importante para algumas regiões do país, apesar de estar em decadência há já vários anos. Já aqui falei da Industria da Argila em Miranda do Corvo, onde existiram várias cerâmicas que se dedicavam, principalmente, à produção de tijolos e abobadilhas para construção, dando assim trabalho a muitos operários. A par com esta industria existiam também no concelho muitas serrações de madeira, que mesmo sendo empresas pequenas eram um factor de desenvolvimento para a região e faziam com que a taxa de desemprego fosse baixa ou quase nula.
A Cerâmica Progresso da Pampilhosa, junto à estação ferroviária, em ruínas. |
Na zona da Bairrada a industria do barro foi também um factor muito importante no desenvolvimento da região e, na Pampilhosa do Botão, concentraram-se algumas grandes cerâmicas que marcaram o progresso no século XX. Infelizmente a maior parte delas não passam hoje de ruínas, mas, no entanto, elas e os operários que lá trabalharam deixaram a sua marca histórica na região e, por esse motivo, a Câmara Municipal da Mealhada decidiu perpetuar a memória de todos esses trabalhadores colocando numa rotunda da vila um monumento de homenagem a todos os que trabalharam o barro.
"A todos os que trabalharam o barro". Apesar de não ter qualquer ligação à Pampilhosa, sinto-me também abrangido por esta homenagem. |
Estas indústrias não nascem ao acaso em qualquer local e, tanto na Pampilhosa como em Miranda do Corvo, foi a abundância de terrenos argilosos que atraiu os empresários e possibilitou o desenvolvimento e o fabrico de materiais cerâmicos nestas regiões. Estas condições aliadas, no caso da Pampilhosa, à existência de um importante centro ferroviário, permitiram que a indústria de cerâmica, fosse florescente durante um século. Actualmente, com o mundo em constante mudança, onde tudo parece efémero, a decadência desta e de outras industrias parece um facto natural e inevitável, no entanto as cerâmicas agora em ruínas deixaram uma marca indelével nas terras onde laboraram e, quem sabe se um dia essa marca não voltará a estar presente na actividade e no dia-a-dia de gerações vindouras.
A Cerâmica onde trabalhei, situada junto aos barreiros. |
Iniciei o meu trabalho na industria do barro, ao serviço da firma António Simões & Filhos, Lda., no dia 1 de Julho de 1978, quando se encontrava em fase de construção aquela que viria a ser a maior fábrica no concelho de Miranda do Corvo. Participei nessa construção, em várias áreas da fábrica, mas o meu trabalho nesta fase incidiu sobretudo no forno, que veio a ser depois o meu posto de trabalho durante aproximadamente dez anos. Tratava-se de um moderno forno-túnel, para produção contínua, muito diferente dos antigos fornos cerâmicos, onde havia a necessidade do seu arrefecimento para proceder às operações de enforna e desenforna do material. As suas paredes e abóbada foram construídas em tijolo refractário de alta qualidade, na parte interna, tendo levado depois vários tipos de isolamento e outros tipos de tijolo até atingir a parte externa, que era de tijolos vermelhos, com face à vista nas paredes, que tinham cerca de um metro de largura. A abóbada, depois de aplicados também vários tipos de materiais isolantes, terminava num piso de chapa de xadrez, na zona de fogo e de cimento nas zonas de aquecimento e arrefecimento. A zona de fogo ficava a meio, tendo o forno no total cerca de 80 metros de comprimento, por cinco de largura. Na zona de fogo existiam 60 bocas onde actuavam os queimadores, que injectavam o combustível para alimentação do forno, que nesta zona atingia quase 1.000 graus de temperatura. No início da zona de aquecimento funcionava um enorme extractor de fumos e gases, que provocava uma considerável poluição na zona, sobretudo no início da laboração da fábrica, em que o forno era alimentado a nafta. Na zona de arrefecimento um recuperador de calor enviava o ar quente daquela zona do forno para as estufas, onde contribuía para ajudar à secagem do material que depois seria empilhado nas vagonetas que iriam circular no interior do forno.
Forno-túnel. |
A temperatura do forno ia subindo gradualmente até atingir a zona de fogo, onde era submetido às altas temperaturas que originavam a sua transformação num material duro pronto para ser utilizado na construção de edifícios. Após a passagem pelo meio das labaredas provocadas pela injecção de combustível, o material entrava na zona de arrefecimento, baixando assim a sua temperatura antes de sair para o exterior. Para evitar quebras nas peças estas tinham que entrar sem vestígios de humidade e não sofrer mudanças bruscas de temperatura no interior do forno e por isso a existência das zonas de aquecimento e arrefecimento.
O funcionamento deste forno era assim bastante simples. No seu interior existiam carris, iguais aos do caminho-de-ferro, em cima dos quais circulavam as vagonetas com o material cerâmico. Entravam na zona de aquecimento, eram empurradas por um macaco hidráulico, com impulsos correspondentes a meia vagoneta, espaçados de cerca de 15 a 30 minutos, dependendo da velocidade a que a gestão da empresa queria que se efectuasse a produção. Quando entrava uma vagoneta na zona de aquecimento, saía outra com o material já cozido na outra ponta do forno. Estas vagonetas circulavam depois noutra linha no interior da fábrica, onde eram descarregadas, já para cima de camiões ou para paletes e eram novamente carregadas com o material saído das estufas, para assim regressarem ao forno. Convém dizer que estas vagonetas eram também forradas com material isolante, sendo algum composto por amianto (na altura talvez não se soubesse que se tratava de um material perigoso). Por debaixo das vagonetas, no interior do forno, havia espaço para se poder circular, sendo por vezes necessário lá entrar para proceder a limpezas, ou por qualquer outro motivo.
No cimo do forno, junto à zona de fogo, estava instalado um grande quadro eléctrico, onde se controlavam as temperaturas através de um gráfico e de vários termómetros. Era necessária uma grande atenção para que se mantivessem as temperaturas programadas. Quando estas baixavam era preciso verificar quais os queimadores que não estavam a funcionar correctamente e proceder à limpeza dos bicos injectores ou à sua substituição em caso de avaria.
Quando a fábrica começou a funcionar o combustível utilizado para a sua alimentação era a nafta, um derivado do petróleo, que entrava nos depósitos em estado quase sólido e que era submetido a aquecimento para ficar fluido antes de ser injectado no forno. Mais tarde a empresa começou a utilizar produtos sólidos, como casca de pinheiro e serradura, por se tratar de um produto mais barato e também bagaço de azeitona, que era um óptimo combustível. Todos eles tinham de sofrer alguns tratamentos, como transformação em pó fino e secagem, antes de poderem ser utilizados. Com esta mudança de combustível o forno teve de sofrer algumas alterações, com a substituição total dos queimadores. Um dos grandes problemas da empresa era, de facto, o custo do combustível para alimentação do forno, que encarecia muito a produção do material cerâmico.
Foram feitas algumas experiências com outros produtos, tendo-se chegado a consumir borracha de pneus desfeita em pequenos grânulos, que era um combustível mais barato, mas que enviava para a atmosfera uma enorme quantidade de gases altamente poluentes. Felizmente este produto não teve sucesso e apenas foi utilizado durante alguns dias, pois o combustível injectado neste forno devia provocar uma explosão de labaredas que tinham de se infiltrar por entre os tijolos e no interior destes para que se pudesse obter uma cozedura uniforme do material. Aconteceu que a borracha, apesar de ser muito inflamável, ardia em cima das vagonas, ou seja no fundo das pilhas de tijolos, o que provocava uma muito má qualidade da cozedura.
Este equipamento funcionava em laboração contínua e a equipa de forneiros, trabalhava em sistema de turnos rotativos, tendo por esse facto direito a um subsídio de 25% sobre o valor do ordenado.
Esta fábrica, já depois da minha saída, modernizou ainda mais o seu equipamento, tendo aumentado muito a sua produção antes de entrar num período de instabilidade, que antecedeu o fim da sua laboração, já há vários meses. Acabou assim a produção em Miranda do Corvo de artigos cerâmicos para a construção de edifícios, uma das mais importantes actividades industriais do concelho, não havendo por agora grande esperança do seu reinício, dadas as dificuldades do país e sobretudo a grande crise que afecta a construção civil.
A Indústria da Argila em Miranda do Corvo
Cerâmicas em ruínas
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